Telephone Colorido resgata heranças do povo Mura
Série de quatro documentários e um CD coletados pela produtora pernambucana, com apoio da Petrobras, investiga a história de uma antiga tribo da Amazônia
Júlio Cavani
Da equipe do Diario
Durante dois anos, os documentaristas da produtora pernambucana Telephone Colorido mergulharam na vida de uma antiga tribo da floresta amazônica para preservar sua cultura por meio da linguagem audiovisual. Com apoio do Programa Petrobras Cultural, eles levaram suas câmeras e microfones para a região do Rio Madeira, onde passaram a documentar as lembranças dos índios mais velhos do povo Mura. O resultado, cujo lançamento está marcado para julho, é um DVD com quatro documentários temáticos acompanhado de um CD com registros verbais e musicais.
Segundo o arqueólogo e documentarista Raoni Valle, que é integrante da Telephone e mora em Manaus há quatro anos, o objetivo é "prestar uma assessoria audiovisual aos povos indígenas para proporcionar um diálogo com a sociedade nacional e evitar que surjam preconceitos." O material pode ser usado tanto em escolas e comunidades, para estimular a auto-estima dos índios, como servir para a divulgação de seu patrimônio imaterial.
As entrevistas são feitas apenas com os representantes dos Mura mais velhos (chamados de "pearas") porque a cultura deles já está em um estágio avançado de descaracterização. A memória é a única fonte de investigação de sua história, mas esses homens idosos estão morrendo aos poucos. Dois dos entrevistados faleceram durante o período de filmagens. "O tamanho dessa perda é diretamente proporcional à vontade de resgatar. É um trabalho de ressignificação do passado", avalia Raoni.
"O sobrenatural", "os pajés", "a história sócio-ambiental" e "o ritual do dirijo" são os temas dos quatro documentários. Esses foram os assuntos que se destacaram ao longo das entrevistas. O material em áudio, captado pelo técnico de som e artista Thelmo Cristovam, preserva a oralidade dos depoimentos e a musicalidade dos Mura, com a gravação de antigas cantigas infantis e cantos religiosos.
O documentário sobre o sobrenatural vai mostrar as lendas e assombrações presentes no cotidiano das comunidades. Segundo o arqueólogo, esses fenômenos inexplicáveis são bastante comuns em toda a região amazônica, pois o povo acredita que seres fantásticos e encantados habitam as escuras profundezas dos rios. Entre eles estão mitos famosos, como a Iara, a cobra grande, o mapinguari (monstro com boca na barriga) e o boto que engravida mulheres. A equipe chegou a filmar mães que garantem ter sido fecundadas pelos animais e mostram seus filhos (crianças normais) para as câmeras.
O episódio sobre os pajés apresenta os vários papéis desempenhados pelos sacerdotes religiosos, que atuam como curandeiros, cientistas, mestres de cerimônia, rezadores e benzedores. O vídeo que aborda a "história sócio-ambiental" reconstitui as mudanças vividas pelo povo Mura, que hoje se distribui em 18 comunidades nas margens do Rio Autazes, afluente do Madeira. "Na Amazônia, a sociedade e natureza não se dissociam", esclarece Raoni.
O dirijo, hoje em extinção, era praticado até a década de 1950, quando foi proibido no Brasil por causa da criminalização do consumo de canabis sativa. O temafoi incluído no projeto porque os pearas sempre insistiam em falar sobre o assunto. Naquela época, eles ainda eram curumins e não podiam participar do ritual, pois apenas os mais velhos eram autorizados. Nem os adultos tinham permissão para fumar a erva. "É um exemplo que ilustra bem o desaparecimento de aspectos culturais dessas etnias, relacionado ao domínio dos fazendeiros", enfatiza.
O projeto foi desenvolvido pela Telephone Colorido junto com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e com a Organização de Professores Indígenas Mura. Todas as filmagens e gravações foram acompanhadas por professores índios, que conduziam as entrevistas de acordo com os assuntos de maior interesse para o resgate histórico da cultura das comunidades. "A gente só fazia plugar os equipamentos", detalha Raoni. Um dos cinegrafistas, Aldevan Baniwa, era da comunidade. Eles também supervisionaram a edição e ajudaram a selecionar imagens entre as 110 horas gravadas. No DVD, cada um dos quatro documentários tem 52 minutos (formato-padrão para a TV). A tiragem é de 1 mil exemplares.
Da equipe pernambucana, também participaram Grilo, Ernesto Teodósio e Enaile Lima, além de Thelmo. A Telephone Colorido já realizou diversos vídeos relacionados à luta indígena, principalmente sobre tribos pernambucanas como os Truká e os Xucuru (alguns com denúncias em seu conteúdo), além de filmes premiados como Figueira do inferno e Resgate cultural.
Diário de Pernambuco
01 de junho 2008